Autor: Pedro Costa
03 jul 2024

Confira a edição de junho de 2024 do Boletim de Jurisprudência, elaborado pelo nosso time de Direito Administrativo.

Para manter os clientes e contatos atualizados, a equipe reúne mensalmente os principais casos julgados nos Tribunais.

PROCESSO 01

Dados do Processo
Resp. 2.093.778-PR, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, por unanimidade, j. 18.06.2024.

Destaque
O serviço oferecido por plataforma de tecnologia, que envolve operações conjuntas com empresas de fretamento, anúncio e cobrança individual de passagens para viagens interestaduais, é um tipo de fretamento em circuito aberto e configura prestação irregular de serviço de transporte rodoviário de passageiro.

Tema
Plataforma digital de venda de passagens. Modelo de fretamento em circuito aberto. Irregularidade. Concorrência desleal com as empresas de transporte de passageiros na modalidade regular. Configuração.

Questão controvertida
O caso concreto envolve a prestação de serviços de fretamento em circuito aberto realizado por meio da utilização de plataforma eletrônica em que os passageiros adquirem viagens para destinos de seu interesse, normalmente em rotas consideradas lucrativas pelas empresas de transporte de passageiros em geral.

Sobre o tema, o Decreto n. 2.251/1998 define, em seu art. 3º, XI, o fretamento eventual ou turístico como o serviço que é “prestado à pessoa ou a um grupo de pessoas, em circuito fechado, com emissão de nota fiscal e lista de pessoas transportadas, por viagem, com prévia autorização ou licença da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT”.

Por outro lado, dispõe o § 1º do art. 36 do Decreto n. 2.251/1998 que, no transporte interestadual e internacional de passageiros, sob fretamento contínuo ou eventual/turístico, “não poderão ser praticadas vendas de passagens e emissões de passagens individuais, nem a captação ou o desembarque de passageiros no itinerário, vedadas, igualmente, a utilização de terminais rodoviários nos pontos extremos e no percurso da viagem, e o transporte de encomendas ou mercadorias que caracterizem a prática de comércio, nos veículos utilizados na respectiva prestação”.

Ou seja, a legislação exige que o serviço de fretamento, para ser autorizado, deve ser praticado somente em “circuito fechado” (as viagens de ida e de volta são realizadas com os mesmos passageiros), o que não é o caso de pelo menos grande parte dos serviços oferecidos pela referida empresa.

Consoante destacado pela ANTT em sua manifestação, sobre o serviço de fretamento, excluindo-se essa característica, “iria haver uma descaracterização do serviço de fretamento, que passaria a se aproximar mais de um serviço regular, vez que um passageiro poderia entrar na plataforma, comprar a viagem de ida para a data e horário que o atendesse melhor e, na sequência, pesquisar a viagem de volta de seu interesse […]. Conforme prevê a Res. 4770/2015, em vigor, uma empresa que deseja operar serviço de transporte regular deve cumprir requisitos muito mais rigorosos que as empresas que operam somente o fretamento (…).”

Nesse sentido, é insustentável a tese da empresa de que atuaria apenas como intermediária, pois, de acordo com o recorte fático delineado pelo Tribunal de origem, o modelo por ela adotado necessariamente envolve operações conjuntas com empresas qualificadas como parceiras. Tanto é assim que ela própria anuncia e cobra individualmente passagens para viagens interestaduais, conforme relatório da ANTT.

Dessa forma, o serviço oferecido pela plataforma de fretamento em circuito aberto implica, na realidade, a prestação irregular de serviço de transporte rodoviário de passageiros. Ou seja, de forma indireta, a plataforma atua como se fosse uma empresa de transporte regular de passageiros em quaisquer rotas interestaduais em que há demandas de viagens, ainda que de forma indireta (pois o serviço é executado por meio de empresas parceiras).

Configurada, portanto, atuação em situação de concorrência desleal com as empresas que prestam regular serviço de transporte interestadual de passageiros.

 

PROCESSO 02

Dados do Processo
Agint no REsp 1.991.470-MG. Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade. J. 11.06.2024.

Destaque
A absolvição criminal com fundamento na atipicidade da conduta não faz coisa julgada no juízo cível, considerando a independência das instâncias.

Tema
Improbidade administrativa. Absolvição no juízo criminal. Atipicidade da conduta. Não vinculação às demais instâncias. Art. 21, § 4º da lei 8.429/1992 suspenso pela ADI 7.236.

Questão controvertida
Conforme entendimento sufragado no Superior Tribunal de Justiça, a absolvição operada no Juízo criminal somente se comunica com a esfera administrativa quando negada a existência do fato ou da autoria (AREsp n. 1.358.883/RS, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 3/9/2019).

A absolvição criminal com fundamento na atipicidade da conduta, não faz coisa julgada no cível, considerando a independência das instâncias que, ademais, consta do próprio art. 37, § 4º, da CF: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Nesse mesmo sentido da independência das instâncias, diversos são os precedentes do STJ: RMS n. 32.319/GO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 22/9/2016 e REsp n. 1.364.075/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 2/12/2015.

O referido entendimento jurisprudencial encontra-se em consonância com o disposto no art. 21, § 3º, da Lei n. 8.249/1992 (na redação da Lei n. 14.230/2021), no sentido de que as “sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria”.

Apesar de o disposto no art. 21, § 4º, da Lei n. 8.429/1992, na redação da Lei n. 14.230/2021, apontar que a “absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei 3.689/1941 (Código de Processo Penal)”, tal disposição está suspensa por liminar deferida na ADI/STF 7.236.

Ademais, nem sempre há correspondência exata entre o dolo que autoriza a improcedência da ação penal por atipicidade da conduta com o dolo exigido no crime de apropriação.

 

PROCESSO 03

Dados do Processo
RMS 73.285-RS. Rel. Min. Teodoro Silva Santos, Segunda Turma, por unanimidade. J. 11.06.2024.

Destaque
A negativa de banca examinadora de concurso público em atribuir pontuação à resposta formulada de acordo com precedente obrigatório do STJ constitui flagrante ilegalidade.

Tema
Concurso público. Prova prática. Revisão judicial de ato administrativo. Excepcionalidade. Exigência de flagrante inconstitucionalidade, ilegalidade ou violação do edital. Resposta formulada em consonância com precedente obrigatório do STJ. Recusa na atribuição de pontuação. Ilegalidade.

Questão controvertida
Compete à Administração Pública a escolha dos métodos e dos critérios para aferir a aptidão e o mérito dos candidatos nos concursos públicos destinados ao provimento de cargos públicos efetivos.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 632.853/CE (Tema n. 485), sob o regime da repercussão geral, firmou a compreensão de que “não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade e inconstitucionalidade.” (RE n. 632.853/CE, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 23/4/2015, DJe 29/6/2015).

Entre as hipóteses de ilegalidade que autorizam a revisão judicial da atuação de banca examinadora de concurso público, a inobservância das regras contidas no edital, as quais vinculam tanto os concorrentes no certame quanto a própria Administração Pública. Por essa razão, a jurisprudência do STJ é uníssona ao admitir a intervenção judicial para garantir a observância de normas do edital.

No caso analisado, quanto à avaliação do item relativo à fixação dos ônus da sucumbência, verifica-se que a conduta da banca examinadora, ao negar pontuação à resposta formulada em estrita observância à precedente obrigatório do Superior Tribunal de Justiça, constituiu ato ilegal e contrária ao edital do certame.

A inobservância de precedente obrigatório do STJ nos certames destinados ao provimento de cargos públicos igualmente contraria o art. 30 Decreto-Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), o qual determina que as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas.

Com efeito, é absolutamente contrário à segurança jurídica e à boa-fé administrativa a conduta de banca examinadora de concurso público que, em matéria de lei federal, recusa a interpretação sedimentada pelo órgão constitucionalmente encarregado de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional.

Por fim, não se pode deixar de assinalar que o edital do concurso público, em seu conteúdo programática de direito processual civil, incluiu expressamente entre os objetos de avaliação “Jurisprudência e Súmulas dos Tribunais Superiores (STJ e STF).”

Assim, ao negar pontuação à resposta formulada em harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a banca examinadora afastou-se indevidamente do objeto de avaliação expressamente previsto no edital.