Autor: Pedro Costa
01 out 2024

Confira a edição de setembro de 2024 do Boletim de Jurisprudência, elaborado pelo nosso time de Direito Administrativo.

Para manter os clientes e contatos atualizados, a equipe reúne mensalmente os principais casos julgados nos Tribunais.

PROCESSO 01

Dados do Processo
AREsp 1.417.207-MG, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 17/9/2024, DJe 19/9/2024.

Destaque
A dispensa indevida de licitação que acarreta pagamento ao agente ímprobo e a ausência de prestação de serviço gera dano concreto e enseja a responsabilização nos termos do art. 11, V, da Lei n. 8.429/1992.

Tema
Improbidade administrativa. Dispensa indevida de licitação. Pagamento ao agente ímprobo e ausência de prestação de serviço. Dano concreto. Princípio da continuidade típico-normativa. Art. 11, V, da Lei n. 8.429/1992. Sentença anterior à vigência da Lei n. 14.230/2011.

Questão controvertida
Cinge-se a controvérsia acerca da aplicação do princípio da continuidade típico-normativa à conduta que frustra a licitude de concurso e/ou a dispensa indevidamente, tendo em vista a atual redação do artigo 17, § 10-C da Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), o qual dispõe sobre a precisão da tipificação e veda a modificação do fato principal e da capitulação legal.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema n. 1.199, conferiu interpretação restritiva às hipóteses de aplicação da nova redação da LIA, adstrita aos atos ímprobos culposos, não transitados em julgados. Em momento posterior, ampliou a aplicação da tese para os casos de responsabilização por violação genérica dos princípios discriminados no caput do art. 11 da referida lei, ou nos revogados incisos I e II do aludido dispositivo, desde que não haja condenação com trânsito em julgado.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de que é possível a aplicação do princípio da continuidade típico-normativa, de modo a afastar a abolição da tipicidade da conduta do réu, quando for possível o enquadramento típico nos incisos da nova redação trazida pela Lei n. 14.230/2021, preservando a reprovação da conduta. Isso porque, a nova legislação, no caput do art. 11, tipifica de forma taxativa os atos ímprobos por ofensa aos princípios da administração pública, não mais se admitindo a condenação genérica por mera ofensa aos aludidos princípios.

A conduta de frustrar o procedimento licitatório, por sua vez, continuou sendo vedada tanto na esfera criminal e cível. O Capítulo II-B do Título XI foi inserido no Código Penal, tratando justamente das mesmas condutas ilícitas. Já no âmbito cível, a referida conduta tem seu similar no art. 10, VIII, da LIA.

A legislação civil, contudo, passou a exigir a efetiva perda patrimonial para que esteja configurado o ato de improbidade, não bastando a presunção de dano ou dano in re ipsa. Se não houver a efetiva perda patrimonial, a conduta poderá ser enquadrada como ato que atenta contra os princípios da administração pública na forma do art. 11, V, da referida Lei.

Até a edição da Lei n. 14.230/2021, a jurisprudência do STJ estava sedimentada no sentido que, na ação de improbidade, o réu defende-se dos fatos imputados, e não da capitulação legal da conduta. Antes, não existia a incidência do princípio da tipicidade cerrada, nem tampouco maior preocupação formal com a subsunção da conduta aos incisos dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA.

No caso, o julgamento pelas instâncias ordinárias ocorreu antes da alteração legislativa, de modo que estavam em consonância com a não aplicação do princípio da tipicidade cerrada. Da mesma forma, não tratou de dano presumido, já que as instâncias ordinárias assentaram a existência de dano ao erário com o pagamento ao agente ímprobo e a ausência de prestação de serviço.

Destaca-se que a jurisprudência atual do STJ é no sentido de que o art. 17, § 10-C da Lei n. 14.230/2021, não pode ser aplicado aos processos já sentenciados.

Logo, na presente hipótese, inexiste óbice legal para a alteração do enquadramento jurídico da conduta ilícita objeto de sentença em data anterior à vigência da referida Lei. Por essa razão, admite-se a incidência da continuidade típico-normativa.

Ainda, o contexto fático delineado pelo Tribunal de origem assentou que no Município existiam outros concorrentes que poderiam se habilitar para disputar o certame, que foi dispensado indevidamente, já que o valor contratado excedeu a própria previsão legal, não sendo cabível a contratação direta. Por isso, as condutas praticadas violaram os princípios que regem a administração pública, sendo constatada a presença do dolo ao ignorar a regra concernente à prévia realização de procedimento licitatório.

 

PROCESSO 02

Dados do Processo
ADI 6.890, Rel. Min Cristiano Zanin, Tribunal Pleno, julgado em 09.09.2024, DJe 18.09.2024

Destaque
É constitucional a vedação à recontratação de empresa contratada diretamente por dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, prevista no inc. VIII do art. 75 da Lei n. 14.133/2021; – A vedação incide na recontratação fundada na mesma situação emergencial ou calamitosa que extrapole o prazo máximo legal de 1 (um) ano, e não impede que a empresa participe de eventual licitação substitutiva à dispensa de licitação e seja contratada diretamente por outro fundamento previsto em lei, incluindo uma nova emergência ou calamidade pública, sem prejuízo do controle de abusos ou ilegalidades na aplicação da norma.

Tema
Direito administrativo e outras matérias de direito público. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 14.133/2021, art. 75, inc. VIII, parte final. Dispensa de licitação no caso de emergência ou de calamidade pública. Vedação à recontratação de empresa já contratada com base no dispositivo. Constitucionalidade do preceito legal, que estabeleceu instrumento de controle da Administração Pública e do particular. Concretização do interesse público e da isonomia na celebração de contratos administrativos. Interpretação conforme à constituição à vedação prevista no texto legal. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente

Questão controvertida
I. Caso em exame

Ação direta de inconstitucionalidade proposta contra a parte final do art. 75, inc. VIII, da Lei n. 14.133/2021, que veda a recontratação da empresa contratada diretamente com fundamento na dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública.

II. Questão em discussão

A questão em discussão consiste em saber se a vedação à recontratação da empresa contratada diretamente em razão de urgência ou calamidade pública, prevista na parte final do art. 75, inc. VIII, da Lei n. 14.133/2021, viola os princípios previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal.

III. Razões de decidir

3. A licitação, prevista no art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, é procedimento que visa à satisfação do interesse público, pautando-se pelo princípio da isonomia. Excepcionalmente, a legislação infraconstitucional pode autorizar a contratação direta pela Administração Pública.

4. A hipótese de dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública era prevista no art. 24, inc. IV, da Lei n. 8.666/1993, que estipulava o prazo máximo de 180 dias para duração do contrato emergencial, vedando sua prorrogação. No entanto, no regime da Lei n. 8.666/1993, como não existia impedimento para que a empresa contratada diretamente fosse recontratada, a consequência foi a permanência das contratações diretas, com seguidas recontratações de empresas contratadas com base na dispensa de licitação em situação emergencial ou calamitosa.

5. É nesse contexto que se insere o inc. VIII do art. 75 da Lei n. 14.133/2021. O novo texto normativo aumentou de 180 (cento e oitenta) dias para 1 (um) ano o tempo máximo da contratação celebrada em razão de emergência e calamidade pública. Em contrapartida, impediu a recontratação da empresa contratada com fundamento no dispositivo.

6. A parte final do art. 75, inc. VIII, da Lei n. 14.133/2021, serve como verdadeiro instrumento de controle tanto da Administração Pública quanto do particular, coibindo situações em que sucessivas contratações emergenciais configuravam burla à regra da obrigatoriedade da licitação e da excepcionalidade da contratação direta.

7. A vedação incide na recontratação fundada na mesma situação emergencial ou calamitosa que motivou a dispensa de licitação com base no art. 75, inc. VIII, da Lei n. 14.133/2021. Interpretação conforme à Constituição que afasta as alegações de violação aos princípios da eficiência e da economicidade ou de ocorrência de discriminação indevida.

IV. Dispositivo

8. Ação direta de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente para dar interpretação conforme à Constituição ao art. 75, inc. VIII, da Lei n. 14.133/2021, sem redução de texto, para restringir a vedação prevista no dispositivo à recontratação fundada na mesma situação emergencial ou calamitosa que motivou a primeira dispensa de licitação, nos termos da tese de julgamento.

Tese de julgamento: 1. É constitucional a vedação à recontratação de empresa contratada diretamente por dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, prevista no inc. VIII do art. 75 da Lei n. 14.133/2021. 2. A vedação incide na recontratação fundada na mesma situação emergencial ou calamitosa que extrapole o prazo máximo legal de 1 (um) ano, e não impede que a empresa participe de eventual licitação substitutiva à dispensa de licitação ou seja contratada diretamente por fundamento diverso previsto em lei, inclusive outra emergência ou calamidade pública, sem prejuízo do controle por abusos ou ilegalidades verificados na aplicação da norma. _________ Jurisprudência relevante citada: ADI 2.716/RO, Rel. Min. Eros Grau, DJe de 07/03/2008