Nesta última terça-feira (27/08), foi publicado o Decreto nº 12.153/2024 (“Decreto”), denominado pelo mercado como “Decreto do Gás para Empregar”, em alusão ao programa criado pelo Governo Federal em 2023, cujos objetivos, entre outros, são aumentar a oferta de gás no mercado doméstico e reduzir os custos associados a infraestruturas da cadeia da indústria. Sob a perspectiva formal, o novo Decreto altera dispositivos do Decreto nº 10.712/2021, que regulamenta a Lei nº 14.134/2021 (“Lei do Gás”).
Baseado na premissa microeconômica de que aumentar a oferta de gás resultará na diminuição do seu preço (pelo preço de equilíbrio menor do insumo), o Decreto atribui à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”) competência para determinar, mediante prévio processo administrativo com oitiva das empresas, respeitada a viabilidade técnico-econômica, a redução do volume de reinjeção de gás natural ao seu mínimo necessário, inclusive com estabelecimento de volume máximo a ser reinjetado. Além disso, a ANP poderá determinar o aumento da produção de gás em campos em produção, ainda que estes já se encontrem em declínio (campos maduros).
Uma vez verificada a possibilidade de aumento dos volumes de produção de gás natural, a ANP determinará aos operadores dos campos revisão dos seus planos e projetos de desenvolvimento e de produção[1], sob pena de adoção das medidas legais e contratuais cabíveis. De toda forma, a Agência fará uma análise casuística para determinar quais agentes serão submetidos a estas exigências.
O Decreto também modificou a disciplina das atividades de escoamento, processamento e tratamento de gás natural. Apesar de seguirem uma lógica de acesso negociado, prevista na Lei do Gás[2], tais atividades foram equiparadas ao transporte de gás natural nas óticas jurídico-tarifárias, e, em determinados casos, as regras do transporte terão aplicação subsidiária às atividades de escoamento, processamento e tratamento de gás natural (art. 5º- A do Decreto nº 10.712/21).
Na ótica tarifária, a ANP estabelecerá remuneração justa e adequada aos titulares de infraestruturas, que equivale à remuneração mínima pretendida para a remuneração do capital por eles investido, com a devida correção inflacionária e amortização ao longo do tempo. Neste sentido, as atividades de escoamento, processamento e tratamento de gás natural se aproximaram à regulação tarifária do transporte, que adotou o modelo de receita máxima permitida (art. 9º da Lei do Gás) e cálculo das tarifas com base nos custos associados ao serviço (art. 13, §3º, da Lei do Gás).
A nova premissa tarifária também impacta o acesso não discriminatório e negociado às infraestruturas de escoamento, tratamento e processamento de gás natural. Com efeito, os operadores de infraestrutura deverão negociar tarifas em base de custos e a remuneração deve ser adequada para os riscos da atividade. Outro aspecto relevante, com impacto nos contratos de acesso às infraestruturas, é que todas as sanções contratuais deverão ser proporcionais aos eventuais efeitos negativos à operação das infraestruturas. Destacamos que a equalização entre o modelo tarifário do transporte e a dinâmica negocial do acesso às infraestruturas de escoamento, tratamento e processamento deverá ser objeto de regulamentação pela ANP.
Sob a perspectiva jurídica, a outorga de autorização para as atividades de escoamento, tratamento e processamento será submetida a um maior escrutínio por parte da ANP. De forma específica, a Agência, após ter autorizado o projeto, conferirá publicidade aos parâmetros econômicos aprovados e fiscalizará o agente, o qual estará sujeito às hipóteses de revogação e cassação da sua autorização[3].
O Decreto alçou ANP e Empresa de Pesquisa Energética (“EPE”) à posição de protagonistas para a implementação das diretrizes nele estabelecidas. A primeira, além das atribuições previamente mencionadas, deverá requerer a adequação de todos os instrumentos – e.g., contratos de suprimento, contratos de acesso às infraestruturas e códigos de conduta elaborados na linha do §2º do art. 28 da Lei do Gás – que divergirem das normas legais e com as boas práticas internacionais da indústria do petróleo e gás natural. Parece-nos uma atribuição polêmica, na medida em que poderia ser questionada como eventual violação da tutela constitucional aos atos jurídicos perfeitos (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal).
A EPE, por seu turno, ficou responsável pela elaboração do Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano. Tal Plano deverá indicar as melhores alternativas para a expansão das infraestruturas do setor de gás natural e seus derivados, abrangendo as instalações do upstream ao midstream. Em linha com os esforços empreendidos pela harmonização regulatória do setor de gás, a EPE poderá considerar os planos de expansão propostos pelas concessionárias e agências reguladoras responsáveis pelos serviços locais de gás canalizado. Cabe ao Ministério de Minas e Energia (“MME”) a aprovação do referido Plano Nacional.
Ademais, vale destacar que o Decreto determina que os operadores de infraestrutura existentes submeterão à aprovação da ANP, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, proposta de Base Regulatória de Ativos (“BRA”), a ser calculada com uma metodologia que goze de amplo reconhecimento. Ainda nas disposições transitórias, o Decreto dita que a ANP adotará a modalidade postal para as tarifas de transporte, com vistas à mitigação das condições que possam favorecer discrepâncias expressivas nos preços entre as regiões do País[4].
O time de Energia e Gás Natural do Villemor Amaral fica à disposição para avaliar como as alterações trazidas pelo Decreto podem impactar seu negócio. A íntegra do Decreto pode ser acessada neste link.
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[1] Art. 26 da Lei nº 9.478/1997. A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes. § 1º Em caso de êxito na exploração, o concessionário submeterá à aprovação da ANP os planos e projetos de desenvolvimento e produção.
[2] Art. 28 da Lei do Gás. Fica assegurado o acesso não discriminatório e negociado de terceiros interessados aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás natural e aos terminais de GNL.
[3] A Revogação ocorre quando a ANP extingue a autorização por motivos de conveniência e oportunidade, como, por exemplo, “a infraestrutura não demonstre compatibilidade com o planejamento setorial” (Art. 6º-F, §3º, II, do Decreto nº 10.712/2021). Cassação, por sua vez, ocorre quando a autorização é extinta pelo descumprimento da regulação editada pela ANP (Art. 6º-F, §3º, V, do Decreto nº 10.712/2021).
[4] Tarifa postal, segundo a definição do Decreto, é a “tarifa uniforme cobrada de todos os carregadores do sistema de transporte de gás natural, independentemente da distância, de sua localização na malha de gasodutos e seu operador, a qual pode ser diferenciada entre entrada e saída”.